A Lei do Feminicídio surgiu como forma de aprimoramento da proteção à mulher, mas ainda enfrenta desafios
Há 10 anos, matar uma mulher por razões da condição do gênero passou a ser considerado crime hediondo, com penas mais severas e regime jurídico mais rígido. Sancionada em 2015, a Lei do Feminicídio reconheceu como qualificadora os motivos relacionados exclusivamente ao sexo feminino que levam ao assassinato desse público, dobrando a penalidade mínima. Entretanto, ao longo da última década, o Brasil registrou aumento de 215% nos casos de homicídios que envolvem violência doméstica ou por menosprezo à condição feminina, chegando ao recorde de quatro mulheres assassinadas por dia em 2024, segundo dados do Sistema Nacional de Segurança Pública (Sinesp).
Ao todo, na última década, 12.129 mulheres foram assassinadas no Brasil apenas por serem mulheres. Isso corresponde a cerca de três feminicídios por dia entre 2015 e 2025. Nesse período, os estados de São Paulo e Minas Gerais foram os mais violentos para o sexo feminio, com 1616 e 1545 homicídios qualificados, respectivamente.
Em 2025, entre janeiro e abril, foram registrados 477 feminicídios no país, com São Paulo (82), Minas Gerais (44) e Bahia (37) liderando o ranking de estados com mais ocorrências. Somente em abril — último mês com dados disponíveis, segundo o Sinesp — foram 129 casos, o maior número para esse mês nos últimos 10 anos.
Embora a Lei do Feminicídio tenha endurecido as punições para esse tipo de crime, especialistas afirmam que o aumento da pena, por si só, não é suficiente para conter os homicídios de mulheres motivados por razões de gênero — o que ajuda a explicar o crescimento dos casos desde a promulgação da norma.
Segundo fontes ouvidas pelo Portal iG, esses assassinatos estão ligados a fatores sociais estruturais e à aplicação falha da legislação. Para esses especialistas, o enfrentamento ao feminicídio exige ações integradas de educação, conscientização, investimento em políticas públicas e capacitação de agentes do Estado.
“Mais do que aprimoramento da lei ou aumento de sanções aplicadas, é necessário que sejam efetivadas políticas públicas que demonstrem a igualdade de gênero, que apresentem às mulheres não apenas os conceitos de violência doméstica e familiar, mas que lhes demonstre os meios pelos quais possam identificar relacionamentos abusivos, violências que possam estar sofrendo e meios pelos quais possam se proteger, inclusive onde buscar ajuda”, avaliou a advogada Cristina Tubino, especialista em Direito da Mulher e de Gênero.
Contexto social
Segundo o Atlas da Violência, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o índice de feminicídio permaneceu estável na última década. Apesar da queda nos homicídios de mulheres fora de casa, a violência letal dentro do lar segue resistente à passagem do tempo e às ações do Estado.
O estudo mostrou uma redução de 34,2% nas mortes de mulheres ocorridas fora das residências entre 2012 e 2022 — passando de uma taxa de 3,5 para 2,3 a cada 100 mil mulheres. No mesmo período, porém, as mortes dentro das residências permaneceram estáveis, com taxa fixa de 1,2.
Isso mostra que, de um lado, há uma queda significativa nos homicídios ligados, em geral, à violência urbana, mas, de outro, a letalidade doméstica — mais associada ao feminicídio — segue praticamente intacta, indicando que as políticas públicas voltadas à segurança pública não têm sido suficientes para proteger as mulheres dentro de seus próprios lares.
Para entender o cenário, esse dado também precisa ser comparado com o número absoluto de mulheres mortas entre 2015 e 2025. Embora os registros de feminicídio tenham mais que dobrado na última década, esse aumento não se refletiu proporcionalmente nas estatísticas populacionais, já que a taxa de feminicídios por 100 mil mulheres permaneceu relativamente estável entre 2012 e 2022. Isso pode ser atribuído tanto ao crescimento da população feminina quanto à maior precisão na classificação dos casos após a criação da lei. Em outras palavras, a violência de gênero ficou mais visível, mas o ritmo de sua redução ainda está longe do necessário.
O aumento dos casos nos últimos anos e a estabilidade da taxa mesmo diante de uma legislação mais rígida ocorre porque, diferente de outros crimes letais, o feminicídio não pode ser encarado apenas como um fenômeno criminal ou de segurança pública, mas sim como uma expressão das desigualdades de gênero estruturais na sociedade. Segundo a socióloga Camila Galetti, essa violência está enraizada em padrões culturais, históricos e sociais que naturalizam a violência contra a mulher e reforçam relações de dominação e controle.
“O feminicídio funciona como um mecanismo de punição para aquelas que transgridem normas patriarcais”, apontou Galetti.
Para a especialista, o feminicídio não pode ser entendido como um ato isolado, fruto de uma psicopatologia individual. Pelo contrário, trata-se de uma manifestação extrema de um sistema de poder de gênero, no qual o patriarcado ainda opera como força dominante sobre a vida, o corpo e a autonomia das mulheres.
“Não é um fenômeno desvinculado da sociedade ou das relações sociais. Ele é uma expressão concreta dessas relações de poder, sobretudo de gênero, articuladas também com opressões de classe e de raça”, explicou a especialista.
A violência que culmina no assassinato da mulher é precedida, muitas vezes, por um histórico de controle e domínio sobre o corpo e os afetos femininos. “O feminicídio funciona como um mecanismo de punição para aquelas que transgridem normas patriarcais”, apontou Galetti. Para a socióloga, casos em que o agressor afirma “se não for minha, não será de mais ninguém” são, na verdade, reflexos de um sentido de posse ainda presente nas relações afetivas no Brasil.
Além de atravessar o espaço privado — como o lar e as relações conjugais —, essa violência também se projeta sobre o espaço público e institucional, afetando o acesso das mulheres a direitos básicos, à segurança e à justiça. O avanço de discursos antifeministas e conservadores, segundo Galetti, contribui diretamente para o enfraquecimento das políticas públicas voltadas à proteção das mulheres.
“Esses discursos deslegitimam a luta das mulheres e reduzem suas pautas a vitimismo e mimimi. Homogeneízam as mulheres, ignorando que há especificidades, como mulheres indígenas, do campo, das periferias, que não têm acesso à internet, transporte ou políticas de saúde”, esclareceu.
Essa homogeneização — que exclui as vozes mais vulnerabilizadas — acaba dificultando o próprio acesso aos direitos já garantidos em lei, criando uma espiral de invisibilidade e negligência. Como consequência, os mecanismos de prevenção e acolhimento falham em alcançar justamente quem mais precisa deles.
Reflexo disso é a dificuldade encontrada pelos operadores do Direito na defesa de mulheres vítimas de violências. A advogada Cristina Tubino sinalizou que, ao longo da sua trajetória, o principal obstáculo identificado na proteção das vítimas antes do desfecho fatal é o desconhecimento da lei e a identificação dos elementos que caracterizam o crime.
“O maior desafio é o desconhecimento da lei, em especial das medidas protetivas de urgência, de quem buscar, de um adequado acolhimento pelas autoridades policiais e do judiciário. Muitas mulheres se sentem desencorajadas quando questionadas quanto à veracidade de suas narrativas”, relatou.
Diante disso, para Galetti, é fundamental que o feminicídio seja compreendido como um fenômeno coletivo, político e social, e não apenas como um caso policial ou jurídico a ser tratado de forma pontual. “O feminicídio está enraizado em estruturas históricas que sustentam a desigualdade entre homens e mulheres. Ele é previsível e evitável, porque decorre de padrões recorrentes de violência que são naturalizados. E ele é coletivo porque afeta toda a sociedade: o filho da vítima, a família, e dissemina o medo que silencia outras mulheres”, avaliou.
A naturalização da violência contra a mulher, segundo a especialista, ainda é um dos maiores obstáculos para o enfrentamento efetivo do feminicídio. “Muita gente trata como se fosse normal que mulheres sejam mortas. E enquanto isso for visto como parte da rotina, a transformação será lenta, e o número de vítimas continuará crescendo”, acrescentou.
Importância da Lei do Feminicídio
A Lei 13104/2015, alterou o artigo 121 do Código Penal para inserir o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio. Essa modificação representou um passo importante no enfrentamento da violência de gênero, uma vez que aumentou a visibilidade das agressões sofridas pelas mulheres e a conscientização acerca desse tipo de crime.
“A criação de um tipo penal específico foi de extrema importância para que se mostrasse a dura realidade de mulheres que estavam sendo mortas em razão do seu gênero ou em decorrência de violência doméstica e familiar. Dar nome a este crime tão presente na realidade brasileira e mundial é essencial”, apontou Tubino.
De acordo com a lei, o assassinato de mulheres passa a ser considerado um homicídio qualificado, quando o crime cometido envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Dessa forma, a morte deixa de ser classificada como homicídio simples e passa a ser reconhecida como feminicídio. Isso significa que a pena, antes de seis a 20 anos de prisão, sobe para 12 a 30 anos de reclusão.
A legislação ainda estabelece que a pena para o feminicídio é aumentada de um terço até a metade se o crime for praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência; ou na presença de descendente ou de ascendente da vítima. Além disso, a lei também incluiu esse tipo de assassinato entre os crimes hediondos, o que impossibilita a aplicação de fiança, indulto ou anistia.
Para a socióloga Camila Galetti, especialista em antifeminismo e conservadorismo, o avanço mais significativo na criação da Lei do Feminicídio foi o reconhecimento simbólico da violência contra a mulher como uma questão estrutural de gênero. Outro fator importante, segundo ela, é que o reconhecimento jurídico da motivação de gênero faz com que outras leis que perpassam as desigualdades de gênero, que estão ligadas ao patriarcado, tenham visibilidade.
Essa legislação, em vigor há uma década, pode ser considerada um complemento à Lei Maria da Penha, criada em 2006. A Lei 11.340/2006 estabelece a violência doméstica e familiar contra a mulher como crime e estabelece mecanismos para sua prevenção e combate, além de prever medidas protetivas para as vítimas.
“A criação de leis que deem nome ao crime é fundamental. A Lei Maria da Penha foi o pontapé inicial da elaboração de legislação que busca a proteção de mulheres que se encontram em situação de vulnerabilidade e que precisam de proteção do Estado”, apontou a advogada Cristina Tubino.
Nove anos depois, a Lei do Feminicídio surgiu como forma de aprimoramento da proteção à mulher. Desde então, as duas legislações são trabalhadas de forma integrada, para garantir maior eficácia das normas.
“São leis complementares e que devem sempre ser aplicadas em conjunto. Não apenas porque a Lei Maria da Penha conceitua a violência doméstica e Familiar, exemplifica as formas de violência e prevê normas de prevenção que se aplicadas de formas suficientes podem impedir a morte da mulher, as Medidas Protetivas de Urgência, mas demonstrar para a sociedade em geral que a violência contra a mulher é um problema social, de todos nós e que todos precisamos agir quando necessário”, considerou Tubino.
Para o advogado criminalista do escritório RCA Advogados, Israel Filipe Fonseca Rosa, a integração das duas leis é estratégica e decisiva quando o assunto é punir a violência contra a mulher. “Enquanto a Lei Maria da Penha atua na prevenção e oferece instrumentos como medidas protetivas, a Lei do Feminicídio se impõe quando a escalada da violência resulta no extremo, o assassinato da mulher. O cruzamento entre essas normas tem sido decisivo para fortalecer a responsabilização de agressores e mapear contextos de reincidência”, esclareceu.
Outro avanço que merece ser considerado é o fato da Lei do Feminicídio ter possibilitado a identificação desse tipo de crime por meio de indicadores numéricos. “Com a Lei do Feminicídio houve também uma produção de dados, visibilidade das estatísticas, e a criação, propriamente dita, dessa categoria feminicídio. E, na sociologia, é importante a gente categorizar, dar nome às violências, porque a partir disso houve uma separação dos homicídios das mulheres como motivação de gênero das demais mortes”, considerou a Galetti.
A inserção do feminicídio em bancos de dados públicos, como no Fórum Brasileiro de Segurança Pública, permite que a gente possa desenvolver pesquisas que vão mostrar o quanto é brutal esses índices de violência contra a mulher que deságua no feminicídio”, explicou Galetti.
Esse, inclusive, é um dos motivos que levam ao aumento do número de casos. “Desde a vigência da lei, o número de registros aumentou, em parte pelo aprimoramento das notificações”, destacou Fonseca Rosa.
Antes da Lei do Feminicídio
Antes da promulgação da Lei do Feminicídio, o assassinato de mulheres em razão do gênero era classificado, em sua maioria, como homicídios simples ou, em alguns casos, homicídios qualificados por motivo fútil, torpe ou meio cruel — mas sem um enquadramento específico que reconhecesse a violência de gênero como elemento central do crime.
O Código Penal não reconhecia explicitamente que o assassinato de uma mulher por ela ser mulher – ou por estar em uma relação de poder e controle com o agressor – era uma forma específica e agravada de homicídio. Assim, o motivo do crime estar relacionado ao gênero da vítima não aumentava automaticamente a pena, nem direcionava o olhar da Justiça para a violência de gênero como fenômeno social.
Além disso, antes da tipificação do feminicídio, era comum que o histórico de agressões, ameaças ou abusos anteriores cometidos pelo autor contra a vítima fosse tratado como algo “privado”, “relacional” ou até mesmo irrelevante para o caso criminal. A polícia, o Ministério Público e o Judiciário frequentemente não valorizavam o contexto de violência doméstica como indício de risco crescente. Isso resultava em investigações superficiais, sem vínculo entre o assassinato e o padrão de controle, ciúmes ou agressividade que o agressor já apresentava.
Como consequência da falta de reconhecimento da motivação de gênero e da desconsideração do histórico de violência, os homicídios de mulheres eram tratados como crimes comuns, muitas vezes com penas menores e sem o rigor necessário. Em alguns casos, os réus conseguiam penas mais brandas ou até progressão de regime com maior facilidade.
Arquivo pessoal
“Desde a vigência da lei, o número de registros aumentou, em parte pelo aprimoramento das notificações”, destacou Fonseca Rosa.
Segundo Fonseca Rosa, as penas aplicadas eram suavizadas por alegações de “forte emoção” ou tratados como “crimes passionais”. “A ausência de uma qualificadora específica dificultava o reconhecimento da motivação de gênero e impedia uma resposta penal condizente com a gravidade dos fatos. A nova tipificação não apenas elevou a pena, como permitiu a visibilidade estatística e institucional do problema”, ressaltou o advogado.
A ausência de um enquadramento específico também impedia a visibilidade estatística do problema e, portanto, dificultava a formulação de políticas públicas voltadas à prevenção e ao combate ao feminicídio. Exemplo disso é que, antes de 2015, o Brasil não contava com uma classificação específica para os assassinatos de mulheres motivados por razões de gênero, como violência doméstica, misoginia ou controle sobre a vítima. Todos os homicídios desse público eram registrados de forma genérica, sem distinção da causa ou do contexto do crime.
Isso significa que não era possível saber, nos dados oficiais, quantas mulheres foram mortas por serem mulheres — ou seja, por razões ligadas à desigualdade de gênero. Os assassinatos praticados por companheiros, ex-companheiros ou por motivos de controle, ciúmes e opressão acabavam estatisticamente misturados aos casos de mulheres mortas, por exemplo, em confrontos com a polícia ou por envolvimento com o crime organizado.
Essa impossibilidade levava a dados imprecisos. A forma mais próxima de identificar a quantidade de mulheres mortas por questões de gênero antes da Lei do Feminicídio, é cruzando dados relacionados ao local da morte e a causa, como agressão.
Agressor mora ao lado
Um levantamento feito pelo Portal iG analisou dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e mostrou que, entre 2005 e 2015 — período anterior à criação da Lei do Feminicídio — 12.440 mulheres foram mortas dentro de casa, vítimas de agressões, intervenções legais ou operações de guerra, como uso de arma de fogo. Essas circunstâncias podem indicar violência doméstica ou de gênero, já que, como indica o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 70% dos feminicídios identificados pelas polícias civis foram cometidos dentro de casa.
O número é significativo porque ultrapassa o total oficial de feminicídios registrados nos 10 anos seguintes à promulgação da lei (2015 a 2025). Ou seja, mesmo sem a tipificação específica, havia um volume elevado de mortes de mulheres em contextos suspeitos de violência de gênero. A diferença é que, sem uma classificação legal, muitas dessas mortes acabaram invisibilizadas nas estatísticas, registradas genericamente como homicídio ou atribuídas a outras causas, como traumatismo, asfixia ou ferimentos diversos, o que sugere uma subnotificação dos casos.
Para entender melhor o peso desses números, vale observar que, entre 2005 e 2015, o Atlas da Violência contabilizou 47.943 homicídios de mulheres. Desse total, o levantamento do iG revelou que 12.440 ocorreram dentro da residência da vítima, o que representa cerca de 25,9% dos casos — uma possível estimativa de feminicídios antes da lei. Já na década posterior, de 2015 a 2025, com a tipificação em vigor, o Brasil registrou 29.665 homicídios dolosos de mulheres, sendo 12.129 classificados oficialmente como feminicídio, o equivalente a 40,8% do total.
A comparação entre os períodos mostra que, embora o número absoluto de homicídios femininos tenha diminuído, a proporção de crimes identificados como feminicídio aumentou. Ou seja, sem uma tipificação legal, muitos assassinatos de mulheres por razões de gênero provavelmente não foram reconhecidos como tal, gerando subnotificação e invisibilidade nos registros oficiais.
Isso reforça a importância da legislação, além de um instrumento punitivo, como mecanismo de nomear e visibilizar uma forma específica de violência — aquela motivada pelo fato de a vítima ser mulher. Sem esse enquadramento legal, muitas dessas mortes continuariam a ser tratadas como mais um dado genérico na estatística da violência, sem que suas causas estruturais fossem, de fato, enfrentadas.
Desafios
Mesmo levando em conta a subnotificação que marcou o período anterior à tipificação do feminicídio, os dados indicam que o número de mulheres mortas em contextos de violência de gênero é mais alto do que se esperava para um país que conta, há uma década, com uma legislação específica, penas mais severas e um enquadramento jurídico rigoroso para esse tipo de crime. A disparidade entre o que a lei prevê e o que os indicadores revelam reforça a ideia de que, sozinha, a punição não é suficiente para frear esse tipo de violência.
O avanço legal e a maior visibilidade do tema, portanto, não se traduziram em segurança efetiva, especialmente dentro de casa. O Atlas da Violência aponta que o ambiente doméstico continua sendo o lugar mais perigoso para muitas brasileiras. A análise das taxas de homicídios cometidos dentro da residência mostra uma estabilidade preocupante, indicando que, ao contrário dos homicídios em geral, os crimes motivados por gênero mantêm características específicas: são praticados por pessoas próximas, muitas vezes precedidos por um histórico de agressões, ameaças e episódios de violência não denunciados.
Esses dados, em especial o recorde que o Brasil alcançou em 2024, com 1454 mulheres mortas, podem ser atribuídos, entre outros fatores, à diminuição na destinação de verbas públicas para políticas de educação e proteção de mulheres. “O último governo cortou drasticamente o orçamento de enfrentamento à violência contra a mulher, sobretudo em 2020. Houve uma queda de recursos da Lei Maria da Penha também, principalmente no disque 180, que vai impactar em outros programas. Então, houve um desmonte de políticas públicas”, analisou Camila Galetti.
Arquivo pessoal
“Precisamos entender que a violência contra a mulher é um ato complexo", alertou Tubino.
“O governo anterior priorizou pautas tradicionais e religiosas, isso resulta numa subordinação do direito das mulheres a outras agendas. Então, isso tem um impacto bem significativo nas políticas públicas para as mulheres e no acesso a essas políticas”, completou.
A advogada Cristina Tubino compartilha dessa avaliação. “Em determinado momento o Ministério das Mulheres foi transformado em uma secretaria. Hoje vemos um Ministério mais atuante. Mas sempre queremos mais. Queremos mais mulheres em espaços de poder, mais políticas públicas que incentivem a igualdade de gênero e mais medidas preventivas, educação nas escolas de ensino fundamental, médio e no ensino universitário”, apontou.
Aperfeiçoamento
Diante desse cenário após a criação da Lei do Feminicídio, o Congresso Nacional aprovou, em 2024, uma mudança na legislação que tornou esse tipo de homicídio um crime autônomo. Dessa forma, o sistema penal brasileiro passou a tratar o assassinato de mulheres por motivos relacionados ao gênero como um ato criminoso específico, com definição própria, e não apenas um homicídio qualificado.
A Lei do Feminicídio enquadrou esse tipo de crime como uma qualificadora dentro do homicídio comum, ou seja, um fator que aumentava a gravidade do delito, mas ainda dentro da categoria geral de homicídio. Com a Lei 14.994/2024, conhecida como Pacote Antifeminicídio, essa violência passou a ser reconhecida como um crime autônomo, com uma definição própria no Código Penal.
Isso significa que matar uma mulher em razão de sua condição de gênero — especialmente no contexto de violência doméstica, menosprezo ou discriminação — não é mais apenas um homicídio qualificado, mas um crime específico, com pena-base de 20 a 40 anos de prisão.
“A nova norma também acrescentou causas de aumento de pena, como quando o crime é praticado durante a gestação, nos três meses após o parto, ou na presença de descendentes da vítima. O objetivo foi tornar a punição ainda mais severa e eliminar dúvidas interpretativas sobre a aplicabilidade da qualificadora”, detalhou o advogado criminalista Israel Filipe Fonseca Rosa.
Entre as causas que agravam a pena para o crime de feminicídio estão situações como a ocorrência diante dos filhos da vítima ou durante a gestação. Nesses casos, a punição pode chegar a 60 anos de reclusão — a mais alta prevista atualmente no sistema penal brasileiro. Antes das mudanças na lei, o aumento da pena já era aplicado quando o crime era cometido durante a gravidez, nos três meses posteriores ao parto, contra menores de 14 anos, maiores de 60 ou na presença de filhos e pais da vítima.
Com a nova redação, esse rol foi ampliado e, agora, também há agravamento quando a vítima é mãe ou responsável por criança, mulher com deficiência ou com doença degenerativa; quando há descumprimento de medida protetiva; ou quando o crime envolve métodos cruéis, como envenenamento, tortura, emboscada ou uso de arma de uso restrito. Além disso, a presença de familiares no momento do crime passou a considerar tanto o ambiente físico quanto o virtual.
Outra mudança significativa diz respeito à perda de cargos públicos. Antes, essa punição dependia de decisão judicial expressa. Agora, a condenação por crime de gênero impede automaticamente a nomeação, diplomação ou designação para qualquer função pública ou mandato eletivo, desde o trânsito em julgado da sentença até o cumprimento total da pena.
Houve ainda o endurecimento das penas para outros crimes cometidos por razões de gênero. Lesão corporal, crimes contra a honra e ameaças passam a ter suas penas dobradas quando a motivação for a condição de sexo feminino da vítima.
A nova legislação também promoveu atualizações importantes em diversas normas. No âmbito da Lei de Execução Penal, de acordo com a atualização promovida pela lei aprovada ano passado, os condenados por crimes contra a mulher perdem o direito à visita íntima, passam a ser monitorados eletronicamente em saídas temporárias e podem ser transferidos para unidades prisionais distantes da residência da vítima.
Quanto à progressão de regime, a regra também foi endurecida. Se antes o condenado por feminicídio precisava cumprir pelo menos 55% da pena para progredir, agora esse percentual passa a ser de 50% para primários e 70% para reincidentes.
Já no Código de Processo Penal, os processos que apuram crimes de violência contra a mulher ou crimes hediondos passam a ter prioridade de tramitação em todas as instâncias e isenção de custas judiciais. Em relação à Lei Maria da Penha, ela passa a contar com aumento da pena para quem descumpre medida protetiva — que agora pode variar de 2 a 5 anos de detenção, frente ao máximo anterior de apenas 2 anos.
“No plano jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça tem reiterado que, havendo indícios mínimos de violência de gênero, a qualificadora, ou agora o crime autônomo, deve ser submetido ao Tribunal do Júri. Além disso, firmou entendimento no sentido de que a proteção da lei também alcança mulheres trans, quando o homicídio é motivado por ódio ou desprezo à identidade de gênero”, completou Rosa.
Ainda no judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou o entendimento de que a tese de legítima defesa da honra, constantemente utilizada nos plenários do Tribunal do Júri, é inconstitucional, não podendo ser ventilada pela defesa daquele que praticou o feminicídio.
Entretanto, os especialistas apontam que o endurecimento das penas não é suficiente para diminuir os casos de feminicídio. “A legislação penal, embora essencial, não resolve sozinha um problema estrutural. Persistem falhas na aplicação. Muitos casos deixam de ser qualificados corretamente como feminicídio por ausência de apuração adequada da motivação de gênero, a rede de proteção à mulher ainda é insuficiente em muitos estados, e a morosidade judicial, aliada à falta de especialização, ainda compromete a efetividade das medidas protetivas”, opinou o advogado criminalistas.
Para a advogada especialista em Direito da Mulher, Cristina Tubino, a Polícia Civil, responsável por investigar casos de feminicídio, é bem treinada nesse sentido, mas é necessário que sejam observados outros fatores, em todas as instâncias, para uma maior efetividade na caracterização do crime.
“É necessário que estejam todos atentos ao Protocolo Nacional de Investigação e Perícias nos crimes de Feminicídio, do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Ao Poder Judiciário, que observe sempre o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero. O Conselho Nacional do Ministério Público tem um Manual de Atuação em casos de Feminicídio”, destacou.
“Se todas essas normas especiais forem observadas, haverá maior facilidade de se caracterizar um crime como um feminicídio consumado ou tentado. Paralelamente a isso é fundamental que os agentes estatais tenham a visão de igualdade de gênero e de que a mulher como sujeito de direitos, muitas das vezes encontra-se em situação de vulnerabilidade o que as torna vítimas de tais crimes”, analisou Tubino.
Por outro lado, é essencial a integração de medidas de prevenção, proteção e responsabilização, com foco na quebra do ciclo da violência antes que ele alcance seu desfecho mais extremo. “A Lei do Feminicídio foi um marco. Mas, para cumprir sua função social, precisa ser aplicada com rigor, acompanhada de estrutura adequada e de uma mudança cultural profunda. A responsabilização penal é indispensável, mas só haverá redução da violência letal contra a mulher quando a prevenção for efetiva e o combate ao machismo deixar de ser retórico e se tornar prioridade de Estado”, alertou Rosa.
“Precisamos entender que a violência contra a mulher é um ato complexo. Não basta a majoração de uma pena ou aumentar a rigidez no cumprimento de uma pena aplicada, como, por exemplo, impedir benefícios durante a execução da pena. É necessário que as medidas de prevenção sejam o foco da atuação estatal”, observou Tubino.
“Desde a educação de crianças e adolescentes nas escolas até as políticas públicas de educação – para homens e mulheres – sobre igualdade de gênero, sobre as medidas de proteção da mulher e conscientização de que a violência é um problema da sociedade. Traz graves prejuízos não apenas para as famílias, mas mais gastos para o Estado, como, por exemplo, para o Sistema Único de Saúde e a Previdência Social”, concluiu a advogada.